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Diretor de Políticas Públicas e Tributação da LCA Consultores critica a guerra fiscal do ICMS e diz que o país precisa de mudanças para corrigir distorções no sistema tributário

Bernard Appy



Ele já está na luta pela reforma tributária no Brasil há um bom tempo. Em 2008 e 2009, o economista Bernard Appy, então secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, chegou a elaborar uma proposta que continha a desoneração da folha de pagamentos, a reforma do ICMS e a unificação dos sistemas de cobrança do PIS/Cofins para um único imposto. Entretanto, enfrentou resistências e a reforma não vingou.

Para ele, o país precisa, urgentemente, de mudanças nesse sentido, sobretudo para corrigir distorções no sistema tributário. Para 2015, ele aposta em uma maior percepção da sociedade e do governo de que a complexidade do sistema tributário atrapalha a eficiência e crescimento da economia brasileira.

“Infelizmente, nos últimos anos só temos dado passos na direção errada. Tendo, no entanto, um envolvimento mais claro do executivo federal, uma decisão política do governo de implementar a reforma tributária, e dado o amadurecimento que existe hoje sobre o tema no Brasil, que é maior do que na época em que discuti o assunto quando estava no governo, há seis anos, existem chances, sim, de ter alguns avanços na direção correta”, avalia Appy.

O economista, que atualmente é diretor de Políticas Públicas e Tributação da LCA Consultores, também criticou a guerra fiscal do ICMS, que além de se basear em incentivos ilegais, o que gera uma grande insegurança jurídica para as empresas, contribui para uma distribuição ineficiente da estrutura produtiva no país. Para ele, a melhor forma de acabar com a guerra fiscal é reduzir a alíquota cobrada no estado de origem, nas vendas interestaduais, que hoje é de 12% e quando há vendas de produtos do Sul e Sudeste para Norte, Nordeste e Centro-Oeste é de 7%.

Appy abordou a necessidade de uma reforma tributária durante o 26º Congresso Nacional da Abrasel. Nesta entrevista, ele ressalta que a “reforma tributária só vai andar quando a sociedade entender que os ganhos que ela pode proporcionar são muito maiores que a perda de um benefício individual que cada setor tem hoje e quando houver uma coordenação política que ajude a tornar essa compreensão mais clara para a sociedade”, conclui.

Confira a entrevista!

Fala-se muito em reforma tributária, mas como explicar de maneira simples o que seria essa reforma?
A reforma tributária é importante no Brasil, principalmente para corrigir distorções grandes que temos no sistema tributário brasileiro e que acabam levando a uma baixa eficiência no funcionamento da economia, ou seja, a produtividade no Brasil é menor do que poderia ser, porque há distorções no sistema tributário. O país cresce menos do que poderia crescer, porque há distorções no sistema tributário. Essas distorções estão disseminadas na estrutura tributária brasileira e o objetivo da reforma tributária é corrigi-las. É possível propor uma reforma que seja mais abrangente, que contemple uma quantidade maior de problemas, ou é possível fazer as mudanças de forma progressiva, ao longo do tempo. O ideal é também fazer mudanças no sistema tributário para torná-lo mais progressivo, mais justo do ponto de vista social, sem prejudicar o funcionamento eficiente da economia.

O que é imposto bom e imposto ruim?
O imposto bom é bem desenhado e o imposto ruim é mal desenhado. Por exemplo, no Brasil temos quatro tributos indiretos que são ICMS, PIS/Cofins, IPI, ISS. Ao analisar a literatura internacional sobre o que seria o imposto indireto bem desenhado, seria apenas um imposto que alcançasse todas as bases de incidência. No Brasil, você tem quatro tributos, supondo que PIS e Cofins é apenas um, e cada um deles só alcança uma parte da base de incidência. Essa fragmentação é um problema. O que é pago de ISS, por exemplo, não gera crédito para o ICMS.

Quais as características ideais de um imposto bem desenhado?
Um imposto indireto bem desenhado, adotado na grande maioria dos países do mundo, é o que chamamos de um IVA (Imposto sobre o Valor Agregado), que é um imposto cobrado em todas as etapas do processo produtivo. Em um IVA bem desenhado, tudo o que a empresa compra gera crédito e tudo o que vende gera débito. No Brasil, em todos os tributos indiretos, uma parte do que se compra não gera crédito, porque a legislação não permite ou porque o Fisco interpreta a legislação de uma forma em que não permite, o que cria uma série de distorções. Essa situação gera o que chamamos de incidência cumulativa, que acaba onerando as exportações e os investimentos. Além disso, gera um grande contencioso entre as empresas e as administrações tributárias. Para piorar, o sistema tributário brasileiro é muito complexo. O Banco Mundial fez um levantamento com empresas de médio porte para analisar quanto tempo elas gastam por ano para pagar impostos. O Brasil é, de longe, o campeão mundial. No país é preciso 2,6 mil horas e o segundo colocado é a Bolívia, com cerca de 1,1 mil horas.

A guerra fiscal do ICMS mostra bem a complexidade do sistema tributário brasileiro. Como o senhor enxerga essa situação?
A guerra fiscal é um problema extremamente sério para o país. Embora cada empresa, individualmente, veja apenas o lado positivo de receber um benefício que a ajuda a se implantar naquela região, geralmente, o benefício da guerra fiscal é dado a uma empresa que normalmente não se instalaria naquele estado. Atualmente, por exemplo, temos São Paulo dando incentivo para atrair a moagem de trigo, que deveria estar no Rio Grande do Sul, porque é o estado que produz trigo no Brasil, e temos o Rio Grande do Sul oferecendo benefícios para uma montadora, que deveria estar em São Paulo. O que acontece ai? Temos trigo viajando à toa pelo país e autopeças e automóveis viajando à toa pelo país, em função de uma estrutura tributária mal desenhada. Tudo isso faz a produtividade da economia brasileira ser menor do que poderia ser e gera um peso morto que não precisaria existir.

Diante dessa situação, como por fim à guerra fiscal do ICMS?
A melhor forma de acabar com a guerra fiscal do ICMS é reduzir a alíquota cobrada no estado de origem, que hoje nas vendas entre estados é de 12% e quando há vendas de produtos do Sul e Sudeste para Norte, Nordeste e Centro-Oeste é de 7%. O ideal é que essa alíquota fosse de 4% ou menos. Não é um processo simples, porque há ganhadores e perdedores e pelo fato de muitos estados dizerem que só fazem guerra fiscal porque não existe uma política de desenvolvimento regional feita pelo governo federal. Ainda sim, mesmo que se resolva esse problema, seguem havendo muitos problemas com relação ao ICMS. Problemas com a multiplicidade de legislações, de uso excessivo de substituição tributária, de regras de substituição tributária que são diferentes entre estados e que são mudadas de última hora e, às vezes, retroativamente.

O senhor já propôs, anteriormente, a reforma tributária, mas não foi aprovada. Quais entraves inviabilizaram a sua proposta?
No passado, a reforma tributária se concentrou muito nos tributos indiretos e no ICMS, que de fato é o maior problema do sistema tributário brasileiro. Exatamente por envolver interesses federativos diferentes e interesses de empresas que têm benefícios nos estados é uma reforma que tende a gerar muita resistência. Esse foi um dos motivos pelos quais a reforma tributária não avançou. Hoje, porém, há uma percepção maior da necessidade da reforma, tanto por parte das empresas quanto dos estados. De um lado, as empresas estão passando por uma situação de grande insegurança jurídica, porque os benefícios do ICMS são ilegais, e sustentar o seu negócio em cima de um benefício ilegal é algo muito frágil. As empresas também estão se preocupando mais, porque o Supremo Tribunal Federal está começando a olhar para essa questão. Do outro lado, os estados, sobretudo os mais pobres, começaram a perceber que a guerra fiscal contribui para a perda de receita, sem de fato contribuir para o desenvolvimento. Em muitos casos, inclusive, no Nordeste, por exemplo, é possível ver claramente que existem dois blocos de estados. Tem aqueles que são os estados mais pobres, que estão preocupadíssimos com os incentivos que os estados mais ricos do Nordeste dão, ou seja, temos uma briga intrarregional muito clara, no qual os mais pobres estão perdendo. Com isso, a guerra fiscal deixou de fazer sentido também para os estados como instrumento de desenvolvimento. É por essa razão que entendo que, hoje, estamos mais maduros para resolver o problema.

E com relação ao PIS/Cofins, o que atrapalhou a proposta?
No caso do PIS/Cofins há distorções muito grandes, inclusive um regime que chamo de Frankenstein, que mistura o regime não cumulativo com o cumulativo, o que é uma maluquice. Outro problema sério é que há uma grande divergência entre as empresas e o Fisco sobre que insumos dão direito aos créditos tributários. Havia uma resistência muito grande para mudar esse regime, porque vários setores e empresas são beneficiados por regimes especiais dentro do PIS/Cofins. No entanto, o grau de contencioso chegou a tal ponto, que a maior parte das empresas brasileiras já entendeu que é melhor mudar essas contribuições e até mesmo que vale a pena aceitar um aumento da alíquota se for para corrigir as distorções existentes. Isso desde que a carga tributária não aumente, é claro. Já vi várias empresas falando que aceitam aumentar a alíquota do PIS/Cofins para ter o que chamamos de crédito financeiro, no qual todos os bens e serviços adquiridos pelas empresas geram crédito, o que atualmente não existe. Da forma como é feito hoje, as empresas gastam muito e tem um enorme desgaste na briga com o Fisco sobre o que gera e não gera crédito. Isso é ruim para a competitividade das empresas.

Acredita que podemos ter a expectativa de mudanças a partir de 2015?
Eu sou otimista. Acho que não vai ser possível resolver tudo de uma vez, porque são muitos problemas. Porém, acredito que qualquer passo que seja dado na direção correta é um avanço. No entanto, infelizmente, nos últimos anos só temos dado passos na direção errada. Tendo, no entanto, um envolvimento mais claro do executivo federal, uma decisão política do governo de implementar a reforma tributária, e dado o amadurecimento que existe hoje sobre o tema no Brasil, que é maior do que na época em que discuti o assunto quando estava no governo, há seis anos, existem chances, sim, de ter alguns avanços na direção correta.

Que outras distorções existem no sistema tributário brasileiro?
Temos uma tributação da folha de salários extremamente alta, que é um enorme desestímulo à formalização do trabalho no Brasil. O governo até começou a implementar o que chama de desoneração da folha, que é a substituição da contribuição sobre a folha por uma contribuição sobre o faturamento. Eu, pessoalmente, não gosto desse modelo. Preferia que houvesse simplesmente uma redução da alíquota sobre a folha, pois a tributação do faturamento gera outras distorções. Acho, inclusive, muito difícil estender para todos os setores da economia essa desoneração, mas de qualquer forma é um avanço na direção correta. O Brasil precisa de um trabalho forte para reduzir a tributação da folha, inclusive no setor de alimentação fora do lar.

Outro problema no sistema tributário é a multiplicidade de regimes tributários. Como o senhor vê essa questão?
Esse é outro problema que temos no Brasil. Aqui há o lucro real, o lucro presumido, o Simples e, dentro dele, várias categorias. Hoje, há seis tabelas do Simples e dentro delas eu diria que há, pelo menos, quatro sistemas tributários diferentes. Para fechar, ainda existe o microempreendor individual. Essa multiplicidade de sistemas tributários, no qual é dado um benefício muito grande para o muito pequeno e mantém-se uma carga tributária muito alta para o grande, na verdade provoca um enorme desestímulo para que as empresas cresçam no Brasil e isso é um problema seríssimo pelo ponto de vista do desenvolvimento econômico. Se queremos crescer e ter empresas competitivas internacionalmente é preciso um sistema que estimule o crescimento das empresas. Muitas vezes, é mais eficiente ter uma cadeia organizada, com procedimentos padronizados com aquisição de insumos padronizados, do que ter vários pequenos negócios independentes. Não estou dizendo que o pequeno negócio seja ruim, mas não se pode impedir alguém de crescer. Para não sair do Simples, muitas vezes, as empresas deixam de crescer. Em outros casos, as empresas começam a se fragmentar artificialmente para poder criar várias empresas dentro do Simples, o que é muito ruim.

Qual seria a solução para incentivar as empresas a buscarem esse crescimento no mercado?
Seria preciso harmonizar todo o sistema tributário. Dar benefícios para os menores, mas de forma harmonizada, não com a fragmentação de sistemas como temos hoje e cada setor tentando se encaixar em uma condição melhor que os outros. Essa briga, com cada setor tentando ter o melhor pra si, faz com que o sistema tributário fique mais complicado e o país como um todo cresça menos. Precisamos caminhar no sentido da homogeneização. Ter um sistema que vale para todos, que tribute menos o pequeno, que seja progressivo, que possibilite o crescimento, mas tem que ser algo diferente do que temos atualmente. Para isso, tem vários princípios que poderiam ser adotados. Um deles, importantíssimo, é reduzir a tributação da folha para permitir que o pequeno possa crescer sem que esbarre nesse problema. O outro é desonerar completamente o lucro reinvestido pelos pequenos negócios, o que é uma boa forma de estimular o crescimento das empresas. Mas implementar essas mudanças seria uma revolução, seria mudar completamente o sistema de tributação de micro e pequenos negócios que temos hoje no Brasil. O processo não vai ser feito do dia para a noite, mas é preciso começar a fazer as mudanças, caminhando para um sistema mais homogêneo no futuro.

A reforma tributária é sinônimo de aumento do Produto Interno Bruno (PIB) brasileiro? Por qual motivo?
Sim. As distorções no sistema tributário brasileiro levam a uma menor produtividade e em muitos casos levam a um grande volume de trabalho desnecessário, que é um peso morto para o país. Ao corrigir essas distorções é possível eliminar esse peso morto e gerar condições para que, durante um período, que pode ser de cinco, dez ou 20 anos, a economia brasileira possa crescer significativamente acima do que ela cresceria sem essa mudança. É difícil fazer uma conta precisa, mas eu diria que é bem razoável dizer que o PIB do Brasil poderia ser 10% ou até mais, 20% maior do que é hoje se fossem corrigidas as distorções do sistema tributário brasileiro. Ou seja, em média, cada brasileiro poderia ser 10% ou 20% mais rico do que é hoje, por conta dessa correção. É um tema extremamente importante, mas é um benefício difuso que vai aparecer, porque a economia vai começar a funcionar de forma mais eficiente, as empresas vão ter menos gastos desnecessários, o custo de recolher imposto vai diminuir, o contencioso tributário vai diminuir e a economia vai se organizar de forma mais eficiente. As pessoas não conseguem perceber os benefícios individualmente e quando o empresário olha o sistema tributário, está olhando aquele benefício que o seu setor tem, que a sua empresa tem, e, muitas vezes, resiste em abrir mão daquele benefício, porque vê o ganho especifico sem analisar a perda geral que está ocorrendo para a economia como um todo. A reforma tributária exige uma coordenação política extremamente bem feita e isso faltou no passado. Acho que o grau de envolvimento político na defesa da reforma tributária não foi suficiente nos governos passados para poder viabilizar a reforma.

Quando a reforma tributária sairá do papel no Brasil?
A reforma tributária só vai andar quando a sociedade entender que os ganhos que ela pode proporcionar são muito maiores que a perda de um benefício individual que cada setor tem hoje e quando houver uma coordenação política que ajude a tornar essa compreensão mais clara para a sociedade.

Fonte: Revista Bares & Restaurantes nº99

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